domingo, 8 de março de 2009

Mais do que um passeio

Impossível discorrer sobre arquitetura sem mencionar um dos maiores centros difusores de cultura do mundo: Paris.
Paris abriga uma arquitetura notável e é considerada uma das mais belas cidades do globo, mas nem sempre foi assim. No início do século XIX, as ruas do centro parisiense eram estreitas e repletas de casas amontoadas. A insalubridade desse espaço tornava precária a condição de vida.Dessin D'Adolphe Varin: Paris, 1850

Georges-Eugène Haussmann foi contratado para executar a reforma urbana de Paris ocorrida na segunda metade do século XIX. Para tanto, construções antigas foram demolidas e milhares de pessoas, deslocadas. Assim, surgiu uma majestosa Paris dotada de largas avenidas e imponentes edifícios, ajustada à industrialização recente queaté então não se refletia nas estruturas urbanas. Contudo, a separação entre as áreas pobres e aquelas partes mais abastadas ampliou a periferia. Nessa nova Paris transitória entre o aspecto medieval e a modernidade apresenta-se o flâneur de Baudelaire, um errante que sente a cidade e atribui significações a toda infra-estrutura vislumbrada. Baudelaire também aborda as contradições dessa formação social.

“Era a explosão do ano novo: caos de lama e de neve, atravessado por mil carruagens, resplandecendo de brinquedos e balas, formigando de cupidezas e desesperos, delírio oficial de uma cidade grande, feito para perturbar o cérebro do mais forte solitário.”
(BAUDELAIRE, Charles. Pequenos Poemas em Prosa
[O spleen de Paris] )

Walter Benjamin igualmente exerceu a flânerie e analisou a figura do flâneur em Baudelaire nos anos 1930. Benjamin afirma que, em Paris, é possível apreciar os mais diversos componentes para os devaneios do flâneur, sendo este uma “criação de Paris”.

O vídeo seguinte exibe belasimagens de Fernando Rabelo, um flâneur brasileiro em Paris.


Flâneur: ser que escapa da vida “como um modo de produção serial” e extrapola o trajeto maquinal casa-trabalho, contemplando não somente a paisagem citadina, mas a vida que dela emerge. O passeioimplica na reflexão sobre o que se vê. Cada praça, cada parte do calçamento é observada e interpretada subjetivamente.Esse indivíduo vai até a multidão ao mesmo tempo em que se isola da mesma, assumindo uma posição de espectador. Ele consegue estar só no meio de muitos.

O flâneur contrapõe-se ao modo de vida capitalista que torna o lazer regido pelas mercadorias, pois valoriza uma nova atitude que exige maior meditação acerca do que nosladeia.

Com o passar dos anos, muitos outros foram descontentando-se com a alienação imposta pelo capitalismo. Já na segunda metade do século XX, surgiu a Internacional Situacionista, cujos membros defendiam, entre outras idéias, a modificação da ordem social, a “revolução do cotidiano”. Tal conquista só seria obtida quando se extrapolasse o uso comum da área urbana. Apossar-se de um lugar implicaria em explorá-lo. Daí provém o convite à deriva lançado por Guy Debord. Busca-se conhecer várias localidades ligeiramente, deixando-se levar a esmo.


Deriva: Andar desorientado, livre de destinos, que propicia um novo conceito da cidade, livre das adjetivações previamente atribuídas aos diversos panoramas. Perde-se na cidade para descobri-la, aumentando-se o conhecimento do lugar. Idéias são soltas, despertadas, a partir do desapego a uma orientação fixa. Um novo olhar recai sobre aquilo que rodeia quem deriva. É uma oposição ao turismo administrado.

Nota-se, desse modo, uma insubordinação à passividade com a qual se encara as ruas e ao senso comum de uso dessas localidades. Essa apropriação criativa de um sítio é também verificada no parkour, criado por David Belle, (com a colaboração de seu amigo Sébastien Foucan), na França, na década de 1980.

Parkour: Arte que envolve o uso do corpo para superar qualquer obstáculo do percurso seguido. Os praticantes, denominados Traceur (homens) ou Traceuses (mulheres), devem mover-se do modo mais direto e veloz possível.

Além de ser uma atividade física, o parkour propõe novas maneiras de interação com o espaço circundante. Minúcias da paisagem são analisadas e, mais do que isso, empregadas no deslocamento. Extrapola-se a observação do meio, pois este passa a se configurar como um instrumento. O ambiente é ampliado uma vez que barreiras não mais atuam impedindo a passagem. Assim, noções de limite são desfiguradas.

O parkour prolonga-se a áreas rurais. O progresso dos movimentos é importante no parkour. O aprimoramento da prática é essencial, assim como o foco no que se faz. David Belle afirma que a chave do sucesso no parkour é não perder a concentração. Sobretudo, parkour envolve ajudar as outras pessoas. O treinamento e o conhecimento adquiridos tornam o praticante útil a terceiros, seja em resgates ou na transmissão do que foi aprendido.
Parkour em Viena

Em acordo com o descrito acima, a partir do momento em que se põe os pés fora de casa, é possível dar apenas uma voltinha, ou aprofundar as ideias acerca da humaidade. Um olhar, um andar sem rumo ou um salto: cada contato diferente com o espaço fará com que se sinta a vida, e não apenas se passe por ela.

Referências:
BAUDELARIE, Charles. Pequenos Poemas em Prosa [O spleen de Paris] - São Paulo: Hedra, 2007
MELCHIADES, Danielle. Trilhando diáologos com Baudelaire
CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin. - Revista de Cultura #29 - São Paulo: 2002
http://www.projetosapiensdemens.blogspot.com
http://www.journal.media-culture.org.au/0607/06-geyh.php
http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp256.asp
http://www.editoraderiva.multiply.com/journal/item/72
http://www.parisinimages.fr

Um comentário:

  1. Ei, Isa!
    ''extrapola o trajeto maquinal casa-trabalho, contemplando não somente a paisagem citadina, mas a vida que dela emerge''
    Belas palavras! :D
    E eu nem tinha passado pela minha cabeça a finalidade útil do parkour em relação à tentativas de resgastes...Muito legal esse ponto que você enxergou!
    Beijos!

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